Tuesday, June 02, 2009

Céu líquido

Ela parou meio estranha e meio estrangeira diante de si mesma. Observou o corpo nu na frente do espelho. A mulher que era entre as curvas e as sombras, a anatomia e o desejo, o sexo e a solidão. Quis inventar uma palavra para se explicar. Entre o amor e a poesia, um lirismo à toa que pudesse transcrever em si. O batom vermelho não riscou a boca. No braço esquerdo pediu "notícias de mim". No seio direito desenhou uma flor. No outro, um coração. O sexo verbalizou "volúpia". Os pés ganharam asas. As mãos ganharam chão. Levou o amor no ventre em gestação. Um rabisco de poema "que te esmole, / devore, / possua". Encontrou um espaço para a saudade atrás da orelha, bem onde as palavras passam mais devagar, a divagar. Fez-se dicionário de si. Criadora e criatura. Julgando entender, construiu estradas em seu terreno íngrime e sinuoso. Se reconheceu mulher. Que arde na carne e na arte de ser o que é.

Os olhos nos próprios olhos. O espelho. Um sorriso que se traduz assim - os lábios entreabertos. Faz tempo bom no céu [da boca] e lá fora começa a chover. Ela escorre lânguida feito gota na tempestade do corpo. O que restaria após o temporal? Trocaria de pele feito cobra arisca? Que novas palavras escreveria? Haveria lugar para a poesia? Uma descoberta que se faz tardia e não há como saber a não ser que.

Vestida de loucura, abriu a porta com uma urgência inesperada. Ergueu os braços para abraçar a chuva, para receber a sua benção. Nua e louca, louca e nua no meio da rua a dançar. Os pés descalços não tocam o chão. Tem passos de quem flutua, jeito de quem foi feita para voar. Não há música, mas ela baila como se fosse carnaval. O corpo em êxtase e o coração em festa. Que há do outro lado do mundo, senão uma canção que ela soube, naquele momento e naquele delírio, fôra escrita para ela e dizia assim "she's dancing in the rain, but she's on fire"? Quantas distâncias teria que supor até que finalmente aquele ritmo se demorasse no território de sua saudade? Pouco importa. Absoluta em sua intimidade, nada mais tem sentido. Não há ensaio ou coreografia. Se rende ao improviso, ao acaso, ao destino, ao que for.

Por fim, se cala. Foram-se embora suas palavras. O coração ficou manchado no peito. A flor voltou a ser semente. O amor foi expelido pelo útero, encontrou a volúpia e se confundiu com ela num borrão vermelho de batom. Restou-lhe a saudade naquele abrigo atrás da orelha. Ficou também um "adeus" meio desajeitado escrito às pressas na palma da mão. A mulher olhou para além da chuva, para aquele outro lado do mundo onde a vista não conseguia alcançar. She's dancing in the rain, but she's on fire. Acenou levemente com um sorriso discreto. She's saying goodbye. She's walking away. She's on fire. E lá, do outro lado, no outro mundo, alguém leu.

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