Wednesday, May 30, 2012

O corpo dela - performance


Andava nua no meio da rua. Estrias e gordurinhas à mostra. Seguia descalça. O corpo era seu. A nudez era sua. Os olhares de choque ou horror - alguns até de desejo - não lhe pertenciam. Desde quando um corpo nos é alheio? Desde quando um corpo - qualquer corpo - nos é estranho? Sem atentado ao pudor. Não tinha motivação sexual ou exibicionista. O corpo que tinha, mostrava como quem mostra os caninos ao sorrir. Não era desejável. Era real, apenas. Era possível. E desfilava sua possibilidade sem vergonha. Um corpo não é obsceno. A ausência do corpo - esta sim - deveria chocar.

Desafiando a falta de senso dos outros. Parou na banca da esquina. Comprou o jornal de domingo. E seguiu. Um corpo na rua a passeio. O corpo que tinha. Não. O corpo que era ela.

Monday, May 14, 2012

Quando uma história cabe numa frase

Você me falou do seu mundo e bagunçou o meu.

Sunday, May 13, 2012

Segundo domingo de maio

Uma mãe sem filho é uma dor que não tem nome.

Fuck it all

Como se fosse difícil encontrar sexo em pleno século XXI. Ou um desses amores entre duas pessoas que não suportam a solidão. Vou te dizer: é fácil, meu bem, bem facinho. É por isso que olho assim e pareço fria. Não estou interessada. E nem me venha com um mimimi brega, um romantismo de boutique. Não diga que está alegre, que me ama, que me quer num dia nublado. Não me peça em namoro. Não tente me fazer feliz. Não saia pulando de relacionamento em relacionamento como se alguém tivesse a obrigação de te fazer sentir amor.  Sinta, apenas, e não encha o saco. Só depende de você. Pare de se embriagar às terças, no meio do expediente, que isso beira o ridículo. Não desconte em mim suas agruras existenciais. Eu não tenho nada a ver com isso. Eu mal te conheço. E pra ser bem sincera, nem quero saber. Fuck it all.

Tuesday, May 08, 2012

O bastardo


Eu sou um texto antigo na sua gaveta. Eu sou a frase mal feita, a ideia torta. Eu sou seu lado feio, sua bagunça mental, sua desorganização. Eu sou o parágrafo solto que nunca foi adiante. Eu sou o começo sem fim, a gravidez interrompida. Eu sou aquilo que você não ousa confessar. Sou sua literatura mais pobre, sua escrita mais chula. Não sou bonito, tampouco agradável. Sou a cara à tapa depois da tapa. Suas linhas mais simpáticas perdem o brilho diante de mim. Você me esconde. Morre de medo que alguém me veja. Eu sou o que há de pior em você. Sou sua falta de senso. Seu senso de humor invertido. Sua falta de graça. Seu deboche e seu escárnio. Eu sou o seu peso sobre a folha quando desaba sem sentido. Sou seu grito mais louco. Não nasci para caber em métrica nem fazer suspirar. Não espero elogios nem carinho especial.

Eu sou a angústia de um filho. Você me pariu, mas tem vergonha de mim.

Sunday, May 06, 2012

O primeiro brinquedo de palavras




Tinha um gosto por palavras que nem sabia medir. Palavra bonita, palavra estranha, palavra-dicionário. Como Manoel de Barros, preferia brincar com elas que de bicicleta. Resultado: nunca aprendeu a andar numa magrela sem rodinhas, e hoje os amigos tiram sarro da menina. "Como assim? Vou te ensinar!". Não tinha jeito. Saía, mas não podia ouvir um quarteto de sopro e ficava alí, na grama às margens da Lagoa, dançando. Som para transformar em palavras.


Até um pacto. "Você me ensina a andar de bicicleta e eu te proponho um jogo".


Dia 1
Abra o dicionário numa página qualquer. Aprenda uma palavra nova.


Dia 2
Use essa palavra pelo menos 5 vezes durante o dia, em contextos diferentes.


Dia 3
Invente um significado novo para essa palavra. "Arenga" pode ser um doce feito de açúcar queimado.


Dia 4
Use a palavra no contexto errado. Dane-se quem ficar com cara de WTF.


Dia 5
Ache uma rima para a sua palavra. Escreva um poema. Pode ser haikai. Quando acabar, recite o seu poema para alguém. Pode ser o seu cachorro ou um desconhecido no meio da rua.


Dia 6
Arranje um ritmo. Cante/declame/só-mentalize o seu poema enquanto rodopia pela sala de estar. Se ajudar, coloque qualquer instrumental do Yann Tiersen pra tocar. Poemas também foram feitos para a dança. Tire-o da cadeira e, juntos, testem uns passinhos. Não vai doer.


Dia 7
Passe a palavra/rima/poesia/sugestão-de-trilha-sonora adiante. Deixe anotado no guardanapo de uma lanchonete, no assento do ônibus, na cestinha do mercado, nas mãos da atendente do McDonalds que acabou de colocar seu sorvete na casquinha.

Wednesday, May 02, 2012

Um dia para aprender a rir


Depois de alguma expectativa, ele entra em cena. O rosto pintado de branco. O nariz, de vermelho. Círculos cor-de-rosa nas bochechas. Senta em frente a uma penteadeira. Há um buraco no lugar do espelho, de modo que seu rosto fica completamente visível para a plateia. Ele franze o cenho. Primeiro, tira o chapéu colorido. Os cabelos castanhos estão rareando. Ele passa a mão na careca que se insinua. Depois tira as luvas, o suspensório, o nariz redondo. Suspira cansado. Da penteadeira, pega um frasco branco e um pedaço de algodão. Embebeda o algodão no líquido do pote e passa devagar aquilo no rosto. A tinta resiste, mas sai por completo. Alí há um rosto com duas pintas no queixo, linhas de expressão visíveis, pés de galinha e covinhas ao sorrir.

- Senhoras e senhores. (Pausa) Respeitável público. (Um sorriso de canto de boca) Hoje, quando cheguei aqui, alguém disse que eu deveria fazê-los rir. Vocês hão de desculpar esse velho palhaço. Hoje eu estou muito, muito cansado. Não vai ter palhaçada, não vai ter marmelada, muito menos quedas de bunda no chão. (Pausa) Ué, vocês não acham engraçado assistir uma boa queda da cadeira? (Silêncio da plateia) Não mesmo? Vamos ver. Eu posso cair. Eu disse: vamos ver!

Ele se levanta. Dá uma volta pelo palco. Um assistente de produção vestido de preto entra em cena. Ele volta para a penteadeira e ensaia sentar-se na cadeira. O assistente puxa o móvel para trás. O palhaço apoia o corpo no vazio e cai. Algumas pessoas soltam um riso nervoso. Não foi tão engraçado assim. O homem no palco se dá por satisfeito e solta uma sonora gargalhada.

- Vocês deveriam ter visto as suas caras! Esse risinho tenso. Onde está senso de humor de vocês? Eu sou a encarnação do ridículo. E como é fácil rir do ridículo dos outros! O nosso, afinal, é drama. Quem acha nossa desgraça divertida é insensível e sem coração. Ah, minha plateia respeitável... O que eu mais queria era não respeitá-los. Era que vocês não se dessem ao respeito! É essa a primeira lição do palhaço. Não é fazer rir. A primeira lição do palhaço é aprender a rir.

(...)

- Como eu não sou lá muito experiente... Pois é, não sou, apesar da careca. Mas como eu ia dizendo, sou novo por essas bandas, então ainda estou na fase do "aprender a rir". É algo que gostaria de compartilhar com vocês. Alguém se habilita?

Ninguém se manifesta.

- Gente por favor. (...) Ok, vamos tentar outra coisa. E o palhaço, o que é que é? (Ele desce até a plateia e para em frente a uma mocinha de vestido) É ladrão de mulher. (Diz sem muita paciência) Com licença. (Segura a mão da moça, que olha para o namorado meio perdida, e a arrasta até o palco antes que ela tenha tempo de reagir)

- E então, meu bem, você tem algo para compartilhar com a gente?
- Como assim?
- Falo de alguma coisa da qual você se envergonhe, que lhe assuste.
- Se me envergonha, eu não deveria guardar para mim?
(O homem abre um sorriso de escárnio) - Não aqui.

(...)

- Então... Eu tenho vergonha de falar em público. (Tímida. A plateia ri) Morro de vergonha de tropeçar no meio da rua e ver que alguém está rindo de mim.
(O homem revira os olhos) - Não me diga... (A plateia ri)
(Pausa)
Ele a encoraja a continuar.
- Também fico super desconfortável quando vou comprar roupa. É trauma de criança. Eu brincava com as minhas Barbies. Na verdade, gostava mais de escolher roupas para elas e pentear seus cabelos que de brincar. Então quando minha mãe me levava para comprar roupa, achava que as manequins queriam se divertir às minhas custas. Pensava que elas iam me vestir tal qual eu vestia as minhas bonecas.
A plateia ri meio incrédula com um medo tão bobo.
- E há pouco eu estava com medo de passar vergonha aqui em cima. Eu não queria passar vergonha, mas não sabia se, pra isso, vocês deveriam ou não rir de mim. (Mais risos)
O palhaço de vira para ela. - Obrigado.
A plateia aplaude.

Agora é a vez de um quarentão ligeiramente acima do peso e com cabelos abaixo dos ombros.
- Eu tenho vergonha de ir à praia.
- Eu tenho medo de escuro.
- E pavor de aranhas!
- Outra noite eu tive um pesadelo onde eu era lutador de MMA. Pelo físico, só se fosse o Roy Nelson, né? (Ele gargalha. A plateia não ri, porque quase ninguém sabe quem diabos é esse Roy Nelson)

Uma a uma, as pessoas sobem no palco. Debochadas, envergonhadas ou simplesmente sem graça, expoõem sua coleção de vergonhas. No fim, uma velha senhora se levanta.
- A senhora tem alguma vergonha, medo ou prazer culposo para compartilhar?
- Ah, meu filho, eu cheguei numa idade em que não tenho mais vergonha de nada. (Dá um sorrisinho) Medo eu sempre tive de muitas coisas, mas outro dia descobri que nem isso tenho mais. Estava eu voltando pra casa à noite quando fui abordada por um certo sujeito. Ele me olhou dos pés ao colar no meu pescoço e, depois de um tempinho detido alí, me encarou nos olhos. "A senhora não tem medo de andar sozinha a essa hora?". Eu estava nervosíssima, mas sabe-se lá como ou por que, as palavras simplesmente saíram. "Quando eu era viva, tinha muito. Agora não tenho mais". O rapaz ficou branco, gaguejou alguma coisa e foi embora rapidinho. (Pausa) E prazer culposo, meu filho? Não tenho isso não! Eu estou velha, mas só estou morta para assaltantes mal intencionados. No mais, gosto de rir. (Sorri deixando à mostra a falta de um canino) E vocês com vergonha de subir aqui, não é? (Se dirigindo à plateia) Bando de palhaços!