Wednesday, May 02, 2012

Um dia para aprender a rir


Depois de alguma expectativa, ele entra em cena. O rosto pintado de branco. O nariz, de vermelho. Círculos cor-de-rosa nas bochechas. Senta em frente a uma penteadeira. Há um buraco no lugar do espelho, de modo que seu rosto fica completamente visível para a plateia. Ele franze o cenho. Primeiro, tira o chapéu colorido. Os cabelos castanhos estão rareando. Ele passa a mão na careca que se insinua. Depois tira as luvas, o suspensório, o nariz redondo. Suspira cansado. Da penteadeira, pega um frasco branco e um pedaço de algodão. Embebeda o algodão no líquido do pote e passa devagar aquilo no rosto. A tinta resiste, mas sai por completo. Alí há um rosto com duas pintas no queixo, linhas de expressão visíveis, pés de galinha e covinhas ao sorrir.

- Senhoras e senhores. (Pausa) Respeitável público. (Um sorriso de canto de boca) Hoje, quando cheguei aqui, alguém disse que eu deveria fazê-los rir. Vocês hão de desculpar esse velho palhaço. Hoje eu estou muito, muito cansado. Não vai ter palhaçada, não vai ter marmelada, muito menos quedas de bunda no chão. (Pausa) Ué, vocês não acham engraçado assistir uma boa queda da cadeira? (Silêncio da plateia) Não mesmo? Vamos ver. Eu posso cair. Eu disse: vamos ver!

Ele se levanta. Dá uma volta pelo palco. Um assistente de produção vestido de preto entra em cena. Ele volta para a penteadeira e ensaia sentar-se na cadeira. O assistente puxa o móvel para trás. O palhaço apoia o corpo no vazio e cai. Algumas pessoas soltam um riso nervoso. Não foi tão engraçado assim. O homem no palco se dá por satisfeito e solta uma sonora gargalhada.

- Vocês deveriam ter visto as suas caras! Esse risinho tenso. Onde está senso de humor de vocês? Eu sou a encarnação do ridículo. E como é fácil rir do ridículo dos outros! O nosso, afinal, é drama. Quem acha nossa desgraça divertida é insensível e sem coração. Ah, minha plateia respeitável... O que eu mais queria era não respeitá-los. Era que vocês não se dessem ao respeito! É essa a primeira lição do palhaço. Não é fazer rir. A primeira lição do palhaço é aprender a rir.

(...)

- Como eu não sou lá muito experiente... Pois é, não sou, apesar da careca. Mas como eu ia dizendo, sou novo por essas bandas, então ainda estou na fase do "aprender a rir". É algo que gostaria de compartilhar com vocês. Alguém se habilita?

Ninguém se manifesta.

- Gente por favor. (...) Ok, vamos tentar outra coisa. E o palhaço, o que é que é? (Ele desce até a plateia e para em frente a uma mocinha de vestido) É ladrão de mulher. (Diz sem muita paciência) Com licença. (Segura a mão da moça, que olha para o namorado meio perdida, e a arrasta até o palco antes que ela tenha tempo de reagir)

- E então, meu bem, você tem algo para compartilhar com a gente?
- Como assim?
- Falo de alguma coisa da qual você se envergonhe, que lhe assuste.
- Se me envergonha, eu não deveria guardar para mim?
(O homem abre um sorriso de escárnio) - Não aqui.

(...)

- Então... Eu tenho vergonha de falar em público. (Tímida. A plateia ri) Morro de vergonha de tropeçar no meio da rua e ver que alguém está rindo de mim.
(O homem revira os olhos) - Não me diga... (A plateia ri)
(Pausa)
Ele a encoraja a continuar.
- Também fico super desconfortável quando vou comprar roupa. É trauma de criança. Eu brincava com as minhas Barbies. Na verdade, gostava mais de escolher roupas para elas e pentear seus cabelos que de brincar. Então quando minha mãe me levava para comprar roupa, achava que as manequins queriam se divertir às minhas custas. Pensava que elas iam me vestir tal qual eu vestia as minhas bonecas.
A plateia ri meio incrédula com um medo tão bobo.
- E há pouco eu estava com medo de passar vergonha aqui em cima. Eu não queria passar vergonha, mas não sabia se, pra isso, vocês deveriam ou não rir de mim. (Mais risos)
O palhaço de vira para ela. - Obrigado.
A plateia aplaude.

Agora é a vez de um quarentão ligeiramente acima do peso e com cabelos abaixo dos ombros.
- Eu tenho vergonha de ir à praia.
- Eu tenho medo de escuro.
- E pavor de aranhas!
- Outra noite eu tive um pesadelo onde eu era lutador de MMA. Pelo físico, só se fosse o Roy Nelson, né? (Ele gargalha. A plateia não ri, porque quase ninguém sabe quem diabos é esse Roy Nelson)

Uma a uma, as pessoas sobem no palco. Debochadas, envergonhadas ou simplesmente sem graça, expoõem sua coleção de vergonhas. No fim, uma velha senhora se levanta.
- A senhora tem alguma vergonha, medo ou prazer culposo para compartilhar?
- Ah, meu filho, eu cheguei numa idade em que não tenho mais vergonha de nada. (Dá um sorrisinho) Medo eu sempre tive de muitas coisas, mas outro dia descobri que nem isso tenho mais. Estava eu voltando pra casa à noite quando fui abordada por um certo sujeito. Ele me olhou dos pés ao colar no meu pescoço e, depois de um tempinho detido alí, me encarou nos olhos. "A senhora não tem medo de andar sozinha a essa hora?". Eu estava nervosíssima, mas sabe-se lá como ou por que, as palavras simplesmente saíram. "Quando eu era viva, tinha muito. Agora não tenho mais". O rapaz ficou branco, gaguejou alguma coisa e foi embora rapidinho. (Pausa) E prazer culposo, meu filho? Não tenho isso não! Eu estou velha, mas só estou morta para assaltantes mal intencionados. No mais, gosto de rir. (Sorri deixando à mostra a falta de um canino) E vocês com vergonha de subir aqui, não é? (Se dirigindo à plateia) Bando de palhaços!

3 Comments:

Blogger Igor Barboà... said...

Disse o palhaço Benjamim: "Eu faço o povo rir, mas e ai, quem vai me fazer rir?"


Seu texto me lembrou esse trecho do filme "O palhaço".


Parafraseando poderia dizer o poeta:


Faço o povo
sentir...
mas e ai,
quem
vai
me fazer
sem ti?


(Risos simples)


Bom ver que voltou a publicar por aqui. Fazia tempo que não via novas postagens. vou aproveitar o momento, e saborear. Gosto do que tu escreve.


Evoé!

11:35 PM  
Blogger Melina França said...

A construção do Clown sempre me interessou muito. Há algo de trágico na sua figura, algo que às vezes nos escapa.

Apareça mais vezes por aqui, Igor. Seu blog me foi uma surpresa boa.

Abraço

6:55 AM  
Blogger Igor Barboà... said...

Sim, uma amiga desse se meu sapatos uma vez(pareciam de palhaço):Ai vem você com seus "Sapatos de Palhaço Triste". Gostei, eles realmente parecia de palhaço e triste.

Assim como o Clown tem algo de triste. Acho que o poeta carrega algo de insensível, nem que seja pela força do tanto sentir. Como uma demência que lhe dói, e ele não escapa.


Sempre que posta eu eu olho. Encontro aqui cumplicidades nas temáticas e boas cenas pra assistir, eu gosto de olhar.


Abraço!(risos)

8:45 AM  

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