Thursday, June 14, 2012

Era uma mulher, era um dragão* - um instante de realidade

*Versão editada. Texto originalmente publicado no portal Nominuto.com [Jornalismo entre impulsos de dromomania]

(O melhor que o seu celular podia fazer em 2010) 

A mulher engole fogo
e solta poesia
pelas ventas,
pelos poros.
A mulher engole fogo
e pede em troca
algum trocado.



Ninguém poderia negar sua natureza inata de dragão. Não enquanto ela estivesse ali, no cruzamento da Nascimento de Castro com a Salgado Filho, em Natal (RN), em frente do sinal, com suas labaredas. “Eu nasci no circo”, diz com um meio sorriso, para se justificar. O semáforo fica vermelho e ela corre para a frente da fila de carros. Aquele é o seu picadeiro. 

Aos 54 anos, Maria de Fátima Dutra diz que já fez de tudo um pouco. “Até varri rua pra Prefeitura”. E desse muito, não se envergonha de nada. Os transeuntes e motoristas chegam a estranhar a mulher mais velha vestindo o ousado conjunto de top e shortinho preto, cheios de lantejoulas. 

“Se eu soubesse que você vinha, teria escolhido uma roupinha mais arrumada”. E suspira como se tivesse falhado em seus poderes adivinhatórios. 

Maria de Fátima veio de longe, do Norte, mais precisamente do Pará. O pai tinha um circo pelas bandas de lá. E foi sob a lona que ela se criou. “Já fiz malabarismo, andei no trapézio, fiz mágica... Eu até dançava. Tenho em casa tudo isso gravado em DVD”, garante. 

Do Pará ao Ceará, onde mora atualmente, Fátima percorreu muito chão. A vida espremida entre a floresta e o mar. Está em Natal há meses. A mãe vive por essas bandas. Os filhos, espalhados. Não poderia ser diferente. Na vida cigana, cada um deles - oito no total - veio onde quis. “Tenho filho cearense, paraense, piauiense, pernambucano... Onde o menino queria nascer, nascia. O que eu podia fazer pra impedir?”. Maria ri. “Pois é, tenho oito”. Depois se lembra: “não, são seis. Dois morreram”. 

Fala séria, mas sem pesar. O mundo dos dragões é para fortes, para quem não tem medo de brincar com fogo. Eles são solitários, os dragões – escreveu Caio Fernando Abreu. E foi além: “Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem”. Nessa brincadeira, lá vai Maria soltar mais uma labareda. 

O fogo, conta, nunca se opôs à sua teima em dominá-lo. “Nunca me queimei. Nem eu nem meu irmão. Ele também faz essas coisas. Ainda bem”. A pele, no entanto, fica ressecada pelo calor. As escamas querem revelar a natureza de dragão. Mas Maria de Fátima passa um leite de rosas, um creminho. Acalma o fogo da pele e tudo fica bem. 

Por noite, ela já chegou a tirar R$ 136. É precisa, mas não conta os centavos. Num dia menos movimentado, consegue juntar R$ 40. Mesmo assim, fala que pensa em parar. Sabe que o querosene que coloca na boca não faz bem. É o preço de sua rajada. Muito mais que R$ 3,50 o litro.

Quando passa a chama pelo corpo, revela que não há segredos: é só passar bem rápido. A qualquer hesitação, uma queimadura. Não, a dúvida não lhe cabe. Ninguém disse que era fácil essa vida destemida de dragão. Depois do circo, da limpeza das ruas, das viagens intermináveis; Maria de Fátima passou a viver de costura em Fortaleza, onde mora. Vez ou outra escapole - ah, essa mania - para dominar o fogo e o asfalto. 

Quando voltar ao Ceará, diz, o ponto está garantido ao irmão – também nascido e criado sob uma lona colorida. Enquanto não vai, bate três vezes a cauda de dragão e sai voando entre rajadas de fogo. Os shortinhos pretos com lantejoulas brilhando mais do que nunca.

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