Thursday, June 28, 2012

Licença poética

Rimar amor com dor
é para ama.dores.

Monday, June 25, 2012

Entre goles de vinho


No alto, num gramado estranho Um vinho. Os carros passando na rua lá embaixo.

- Eu não sei o que fazer. A vida tem me doído tanto, você nem sabe.
- Já tentou se entregar? Chorar até adormecer, até perder as forças. Esgotar isso, entende? Se não for assim tão fácil, uma hora você percebe que tá exagerando.
- É o conselho mais estranho que alguém já me deu: sofrer. [Ele ri]
- Se eu disser "não fica assim", não vai adiantar, né?

- Você me conhece tão bem.
- Que engano, isso. Você sempre vai conseguir me surpreender.

- Eu estava com saudade disso. Beber vinho aqui, vendo os carros passarem lá embaixo... É uma coisa tão nossa.
- Eu lembro! Eu com uns 18, você um pouco mais velho. A gente saía, vinha pra cá, comprava um vinho e sentava nesses banquinhos pra conversar sobre nada e tudo ao mesmo tempo. [Pausa] A gente sempre esquecia o abridor, daí tinha que comprar um novo também. Uma vez surrupiei um do mercado e você quase me entrega à polícia. [Ela olha pra ele em tom de acusação, mas ri]
- Trombadinha...

(...)
- Você é o meu melhor amigo. Mesmo depois que mudei de endereço, de cidade, de estado. Mesmo se eu mudar de país, certamente vai continuar sendo um dos melhores. É sério.

- Eu tô tão feliz que você tenha encontrado alguém bacana. A gente saiu um dia antes d'eu viajar, lembra? Você tinha começado a namorar no dia anterior e foi me contar a novidade.
- É... E você desdenhou completamente. "Por quem você está apaixonado dessa vez?".
- Não tenho culpa. Você era como o Joel, d'O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças com aquele lance de se apaixonar por qualquer garota que te desse um pouco de atenção.

- E quando a gente foi naquele parque fazer artesanato pros nossos respectivos? A minha ex-namorada nunca usou o colar de biscuit.
- Sério? Eu achei maneiro. A caixa que fiz também deve ter ido parar no lixo. O que a modernidade fez com o romantismo?
- Vamos admitir: o problema não é o romantismo. Somos bregas.

- E você, como tá? Ainda curtindo a "vibe de estar só"?
- Você me conhece. Eu fico bem sozinha. Mas olha só, conheci um cara. Não sei em que ponto estamos. Acho que é um caso de "quase amor".
- Por que o pessimismo?
- Não é pessimismo. Eles estão por toda parte, os quase amores. Eles cruzam com a gente nas esquinas. Eles puxam papo no metrô. Eles te olham demoradamente na fila do banco, justo no dia em que você saiu com o cabelo desgrenhado e sem maquiagem. Te dão um beijo e logo precisam embarcar urgente para Istambul. É tudo um grande "E se...?"
- Eu gosto dessas possibilidades. Você não?
- Até acho bonitinho. Pro cinema ou pra literatura, sabe como é? Pra vida, não tenho muita paciência. Não costumo gostar de nada "quase".

- É como aqueles romances hercúleos, cheios de sofrimento. Sabe que quando eu era mais nova, queria isso?
- O que?
- Sofrer muito. Eu achava bonito, o sofrimento.
- Que loucura. Eu queria ser astronauta e muito, muito feliz.

- Ei, no casamento da Ana, foi bom te ter do meu lado pra chorar feito menininha. Odeio esses sentimentalismos públicos, mas com você deu pra relaxar.
- Não vou cair nessa. Na hora, você disse que ficou feliz porque eu estava chorando mais que você.

- Você teimou de só ter melhor amiga mulher, nunca vi.
- Foi o jeito que encontrei de conhecer a alma feminina. Um cara feio precisa ter os seus artifícios na arte da conquista.
- A gente te ensinou bem, então. Ainda bem.

[risos]

[Pausa]

- Acho que sorrir tem o mesmo efeito.
- Efeito de que?
- Aquele lance de esgotar a dor.

Friday, June 22, 2012

Plural

Ser plural não implica nós.
Desata-me.

Monday, June 18, 2012

[O que me inspira]

On my way to Monte Crista, um balanço pendurado no céu ~

Thursday, June 14, 2012

Era uma mulher, era um dragão* - um instante de realidade

*Versão editada. Texto originalmente publicado no portal Nominuto.com [Jornalismo entre impulsos de dromomania]

(O melhor que o seu celular podia fazer em 2010) 

A mulher engole fogo
e solta poesia
pelas ventas,
pelos poros.
A mulher engole fogo
e pede em troca
algum trocado.



Ninguém poderia negar sua natureza inata de dragão. Não enquanto ela estivesse ali, no cruzamento da Nascimento de Castro com a Salgado Filho, em Natal (RN), em frente do sinal, com suas labaredas. “Eu nasci no circo”, diz com um meio sorriso, para se justificar. O semáforo fica vermelho e ela corre para a frente da fila de carros. Aquele é o seu picadeiro. 

Aos 54 anos, Maria de Fátima Dutra diz que já fez de tudo um pouco. “Até varri rua pra Prefeitura”. E desse muito, não se envergonha de nada. Os transeuntes e motoristas chegam a estranhar a mulher mais velha vestindo o ousado conjunto de top e shortinho preto, cheios de lantejoulas. 

“Se eu soubesse que você vinha, teria escolhido uma roupinha mais arrumada”. E suspira como se tivesse falhado em seus poderes adivinhatórios. 

Maria de Fátima veio de longe, do Norte, mais precisamente do Pará. O pai tinha um circo pelas bandas de lá. E foi sob a lona que ela se criou. “Já fiz malabarismo, andei no trapézio, fiz mágica... Eu até dançava. Tenho em casa tudo isso gravado em DVD”, garante. 

Do Pará ao Ceará, onde mora atualmente, Fátima percorreu muito chão. A vida espremida entre a floresta e o mar. Está em Natal há meses. A mãe vive por essas bandas. Os filhos, espalhados. Não poderia ser diferente. Na vida cigana, cada um deles - oito no total - veio onde quis. “Tenho filho cearense, paraense, piauiense, pernambucano... Onde o menino queria nascer, nascia. O que eu podia fazer pra impedir?”. Maria ri. “Pois é, tenho oito”. Depois se lembra: “não, são seis. Dois morreram”. 

Fala séria, mas sem pesar. O mundo dos dragões é para fortes, para quem não tem medo de brincar com fogo. Eles são solitários, os dragões – escreveu Caio Fernando Abreu. E foi além: “Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem”. Nessa brincadeira, lá vai Maria soltar mais uma labareda. 

O fogo, conta, nunca se opôs à sua teima em dominá-lo. “Nunca me queimei. Nem eu nem meu irmão. Ele também faz essas coisas. Ainda bem”. A pele, no entanto, fica ressecada pelo calor. As escamas querem revelar a natureza de dragão. Mas Maria de Fátima passa um leite de rosas, um creminho. Acalma o fogo da pele e tudo fica bem. 

Por noite, ela já chegou a tirar R$ 136. É precisa, mas não conta os centavos. Num dia menos movimentado, consegue juntar R$ 40. Mesmo assim, fala que pensa em parar. Sabe que o querosene que coloca na boca não faz bem. É o preço de sua rajada. Muito mais que R$ 3,50 o litro.

Quando passa a chama pelo corpo, revela que não há segredos: é só passar bem rápido. A qualquer hesitação, uma queimadura. Não, a dúvida não lhe cabe. Ninguém disse que era fácil essa vida destemida de dragão. Depois do circo, da limpeza das ruas, das viagens intermináveis; Maria de Fátima passou a viver de costura em Fortaleza, onde mora. Vez ou outra escapole - ah, essa mania - para dominar o fogo e o asfalto. 

Quando voltar ao Ceará, diz, o ponto está garantido ao irmão – também nascido e criado sob uma lona colorida. Enquanto não vai, bate três vezes a cauda de dragão e sai voando entre rajadas de fogo. Os shortinhos pretos com lantejoulas brilhando mais do que nunca.

Tuesday, June 12, 2012

Quando ela descobriu a música

Boite lotada. Corpos se movendo num compasso que ela não sabia sentir com os ouvidos. Se aproximou das caixas de som como se fossem a cartola de um mágico. Quis desvendar o segredo, descobrir o truque por trás do ritmo. De repente, sentiu. Foi como uma rajada de ar quente no rosto. Então era isso! Pontinhos minúsculos de energia lhe acertavam na face, quase um choque. Pôs a mão na caixa preta. O som penetrou-lhe na carne. A mão vibrava sozinha. Foi o primeiro passo de dança que aprendeu na vida. Deixou-se invadir. Era preciso confundir sensação e efeito. Um som além do som. O que é a música senão aquilo que vibra em nós? Seu quinto sentido era a capacidade de encantar-se.

Ninguém sabia, mas ela mergulhava no mundo de um jeito próprio. Que pena dessas pessoas condenadas a ouvir só com o ouvido. Tão bobos, tao auto-centrados. Tão perdidos em suas próprias percepções. Como se soubessem mais sobre a delícia de existir. E ela alí, atrevida - música que transborda pelo corpo inteiro, vira dança. E a dança vira vida. Som para sentir com os poros.

Friday, June 08, 2012

O dia nasce no mar

(Copacabana)

Bom dia é pegar o sol com os olhos ~

Sem espelho, a divagar

Foi só um segundo para contemplar, em mim, aquilo que não tem nome. De costas para o espelho. Olhos abertos pra dentro. Espaço vazio que não se descreve, não se explica. Você não é o seu nome. Não é suas ocupações. Não é alto nem baixo, nem magro nem gordo. Não na precisão desse segundo. Ser sem medida. Nem melhor ou pior, apenas.

Li em algum lugar - Não somos seres materiais numa experiência espiritual. Somos seres iluminados vivendo uma experiência terrena.

Então não se acanhe. Viva, ame, dance, ria, adote uma criança, viaje, prove novos sabores, mude de endereço, brinque de ciranda, transe como se não houvesse amanhã, prepare o seu próprio jantar, cuide de um animal abandonado, escale uma montanha, escreva um poema, aprenda técnicas orientais de respiração, faça kung fu, tenha paciência, às vezes seja obsessivo e irracional, medite, arrote o alfabeto, deixe-se gargalhar. Teste seu corpo e sua mente. A vida taí pra isso, meu bem.

Não se leve tão a sério. Não me leve tão a sério. Eu não lhe levo a sério. Descubra como ser leve. Não acredito em quem não se permite dançar. Não respeito quem não sabe rir de si mesmo. Não dou bola pra gente sisuda demais. Viva como quem escreve. Invente suas próprias histórias. Leia para apreender as dos outros. Escreva para compartilhar uma parte de si mesmo que talvez nem você conheça. Ou dance um ballet, se preferir. Faça yoga. Encene uma peça. Saiba ser autor, ator e também personagem. Experimente.

São tantas possibilidades e, ao mesmo tempo, aquele momento de vazio. Que permanece. O mundo é Maya, mas dane-se. Há algo em mim que se encanta com o pôr-do-sol, com as ondas do mar, com as ruas de asfalto, com toda sorte de gente. Há algo que vibra ao ouvir uma música. Um espírito travesso que quer provar uma nova cerveja ou um novo amor. Há algo que me escapa. Que não compreendo por completo. Aquilo que me acalma quando quero ser mais carne que alma. São duas (ou não) que vão descobrindo as possibilidades uma da outra. E aí escrevem poesia.

Tuesday, June 05, 2012

Cenas do dia


A vida passa ligeira pela janela do ônibus - o mundo, borrão colorido. Uma menina tenta ler sua mais nova aquisição literária - "História abreviada da literatura portátil", título um tanto pomposo para uma história abreviada -, mas os constantes solavancos a impedem. O motorista, por alguma razão misteriosa, parece jamais pisar completamente no freio. No máximo, segura a meia embreagem, o que causa tremedeiras em toda a estrutura do veículo. "O infinito, meu caro, é bem pouca coisa; é uma questão de escrita. O universo só existe no papel", a citação de Paul Valéry aparece numa das primeiras páginas. Ela ergue os olhos quase com raiva diante de uma nova trepidação. Foi nesse momento que viu.

O sorriso do meninote correndo atrás do ônibus poderia comportar, também, o infinito. Devia ter uns seis anos, sete no máximo. Ela ainda pôde vislumbrar o rosto preocupado da mãe. O resto, na cabeça da moça, se passava mais ou menos assim. O menino correu e correu. Correu tempo suficiente até que ela compreendesse que não era o ônibus que ele perseguia.

Logo ela enxergou a enorme bolha de sabão um pouco à frente. A mãe desaparecera. A criança finalmente alcançou seu objetivo. No momento em que tocou a bolha, no entanto, subitamente entrou dentro dela e saiu voando em seu pequeno casulo de água e detergente. O menino passou pelo ônibus e acenou para ela. Surpresa com essa atitude, ela se distraiu e, tão rápido quanto começara tudo aquilo, a bolha estourou fazendo desaparecer para sempre o rapazinho.

Foi quando um casal surgiu no seu campo de visão. Ao contrário das paisagens que se desenrolavam através do vidro, aquela cena acontecia em câmera lenta. O homem pegou a mão da mulher e disse alguma coisa. Há belezas que a imaginação não consegue supor. Uma música começou a tocar abafada, porque alguns momentos simplesmente pedem por uma boa trilha sonora.

Sit me down. Shut me up. I'll calm down. And I'll get along with you. O homem levantou a mão hesitante e fez o carinho no rosto da mulher. Ela sorriu sem jeito. Não se beijaram. Um ficou olhando fundo nos olhos do outro, imersos cada um em seu próprio mar - os dela, castanhos; os dele, ora verdes, ora azuis. Olhos escuros e densos como a terra. Olhos-líquidos e revoltos, a iminência do naufrágio. Naquela imensidão de cores, se fundiram. O tempo voltou a atropelar a paisagem, mas a tarde ganhou um tom completamente novo.

Do outro lado da rua, havia um gato que dividia preguiçosamente o banco com um homem. Já passava do meio dia e, provavelmente, os dois tinham decidido tirar um cochilo depois do almoço. Em seu sonho, o gato era um homem. Tinha se apaixonado por uma moça que viu passar naquele mesmo dia, pela manhã. Ela tinha coxas grossas e torneadas, completamente visíveis para qualquer um com o ângulo de visão do gato - o mundo de baixo para cima. Na sua fantasia, o gato segurava a mulher e lhe dizia assim: Don't, it's not safe no more. I've got to see you one more time soon, you were born in 1984. Já o homem – o outro que nunca foi gato e que não entendia inglês – acordou com os ruídos daquele sonho estranho.

A moça que observava a tudo se enganara: não, ele não tinha almoçado ainda. Isso ficou evidente quando o ilustre desconhecido levantou, se espreguiçou e arrastou o corpo magro até a lata de lixo mais próxima. O homem, meu Deus, era um bicho - ou um poema de Manoel Bandeira ao revés. Não, não. O homem era inegavelmente um homem. Era exatamente a sua humanidade que perturbava, nada mais.

A mocinha sacudiu a cabeça como que para afastar algum tipo de pensamento. Deu um pause na música que ouvia no iPhone como se parar o som pudesse interromper também o movimento frenético de suas ideias. A esta altura, um senhor de meia idade entrou no ônibus. Mal se acomodou em seu assento, começou a cantar um bolero. Ela olhou espantada para o novo passageiro. Essas coisas não deveriam acontecer somente numa produção com Fred Astaire e Ginger Rogers? Sabendo disso, ela esperou placidamente que todos na condução começassem também, de súbito, a acompanhar o Carlos Gardel brasileiro; mas nada aconteceu. Só podia distinguir, entre os ruídos do trânsito e das conversas, a voz daquele senhor. Ele não era um cantor magistral, mas parecia pouco se importar. Só parou seu pequeno número quando começou uma discussão.

O motorista aparentemente tinha feito um desvio no trajeto original. Uma das ruas estava fechada para um evento ou coisa do tipo. Uma mulher com uma criança de colo foi até perto do cobrador e começou um novo show que ofuscou a apresentação do insuspeitado cantor. Ele resmungou algo como "Não se pode mais cantar com essa barulheira" e, sem cerimônia, puxou a cordinha. As cortinas se abriram e ele partiu para o palco das ruas.

Foi o tempo necessário para outra artista entrar em cena. No décimo segundo andar de um prédio de incontável altura, a mulher parecia desafiar a própria sorte, a própria morte. Começou, cuidadosa, um misterioso balé – metade do corpo para fora da janela, as mãos ágeis passavam um pano contra a barreira invisível do vidro. Poucos podiam apreciar o espetáculo. Cada gesto parecia meticuloso e calculado, um ensaio rítmico. O vento fazia dançar também o cabelo daquela bailarina das alturas. Depois de um movimento mais brusco, sem sequer agradecer sua plateia, ela voltou para o anonimato das coxias.

A próxima figura era uma menina, mas não por muito tempo. Ela não podia se dar ao luxo de perseguir bolhas de sabão. Não estava apenas do outro lado da rua, mas do outro lado da vida. No meio fio, um mar de gente de um lado - a segurança das calçadas - e um mar de carros do outro - o perigo, sempre ele. Viver, para a menina, era como se equilibrar numa corda bamba.

Aos olhos apressados da moça do ônibus, ela logo foi mudando de fisionomia. Parecia mais velha agora. Os peitos já brotavam como frutas maduras. O corpo maltrapilho exibia algumas curvas, embora, subnutrido, não pudesse ostentar o ar de saúde das donzelas verdadeiramente bonitas. Um homem desconhecido, com ao menos 30 anos a mais, passava a mão pela intimidade daquela garota. Ela escondia o rosto, mas, num
lampejo, foi possível enxergar o quão tristes eram aqueles olhos. Olhos-buracos-negros: profundos e sem volta. Embora a menina continuasse a crescer sob as vistas da passageira do ônibus, ambas sabiam: aquela moça nunca se tornaria mulher.

Adiante, numa curva qualquer, havia um dragão. Soltava fogo pela boca, o homem no semáforo. A sua frente, a frieza metálica dos carros - vidros quase sempre erguidos, mas ele não ligava. Há quem faça arte até quando os sinais estão fechados. Não se queimava, o dragão, acostumado à vida de labaredas. Antes que se imagine, a chama se apaga. No fim sobram, talvez, alguns trocados.

Já no caminho de um rapazote – quinze, dezesseis anos – existia uma pedra. Em plena luz do dia, ele escapava da sua condição de menino. Poderia – quem sabe? – correr e embarcar numa bolha de sabão. A fantasia ao alcance de uma tragada. Mas diferente do primeiro menino, este não tinha uma mãe preocupada para seguir seus passos. E, então, sem que ninguém alterasse o semblante, ele corria. Corria atrás de uma bolha que não alcançava nunca. Correria até sumir numa nuvem de fumaça e, então, seria como se nunca tivesse existido. O mundo continuaria a passar pela janela da condução, que continuaria a passar pelas ruas da cidade.

Sim, a vida passa ligeira pela janela do ônibus. É difícil distinguí-la, mas lá está ela. Vez ou outra surpreende com um sorriso. N’outros momentos, quase faz chorar. Não existe beleza maior que a paisagem que a vista enquadra – sejam seus olhos castanhos, verdes-azuis ou negros sem fim. São alegrias que parecem inesgotáveis, dramas homéricos ou pequenas catástrofes. A literatura está on the road, como em Kerouac. A retina capta cada movimento como numa fotografia. A imaginação faz o resto. “O infinito, meu caro, é bem pouca coisa; é uma questão de escrita. O universo só existe no papel”. A menina se dá conta de que jamais passou dessa frase. Lembra das histórias abreviadas, da vida-literatura portátil. E põe-se a escrever.

Distraída, ela passa do ponto (final).

Monday, June 04, 2012

Ironia: um não-texto

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror
(Adélia Prado)

Quando o peito ferver, quando o olho brilhar, quando fogos de artifício explodirem do lado de dentro, tente não escrever. Ironia pouca pra quem sempre procurou encaixar a vida num apanhado de palavras, mas tente. Não mate o sentimento no papel. Não amarre a alma com frases bem construídas. Guarde essas cores, esse burburinho, esse rebuliço. Renda-se à leveza. Aproveite, apenas - sem se preocupar com métrica ou rima. Deixa a vida se escrever no seu riso e só.